quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Números perfeitos

  
Autor: Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos
Texto publicado originalmente na revista eletrônica Espiral do Núcleo José Reis, na edição de julho-agosto-setembro de 2008.
Alguns errinhos foram corrigidos com a autorização do autor do texto.
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   O conceito de perfeição está associado ao ideal e ao divino. Os seres reais costumam ser classificados como imperfeitos, ainda que o conceito de perfeição seja vago. Mas alguns números são perfeitos. O que caracteriza um número como perfeito ? 

   Perfeição não é aparência. Para saber se um número é perfeito é necessário conhece-lo por dentro. É isso mesmo ! Vamos olhar os números por dentro. 

   Antes que o leitor abandone o texto pensando tratar-se de pseudo-matemática, espere um pouco. Nem sempre os matemáticos foram vistos como frios e calculistas. Grande parte do conhecimento matemático veio de um ambiente religioso.

   Por volta do séc. VI a.C., grupos religiosos que cultivavam conhecimentos secretos proliferavam em terras que correspondem hoje ao sul da Itália e à Grécia. O conhecimento secreto de cada grupo, designado genericamente como "mistério", era transmitido através de mitos, ritos e símbolos próprios. O ingresso a estes grupos era marcado por um "rito de iniciação". Os "mistérios" mais conhecidos foram os eleusinos, os délficos, os órficos, os dáctilos, os báquicos, os cabíricos e os dáctilos. Um novo grupo surgiu nesta época, os pitagóricos. Eles destacaram-se porque seus símbolos secretos eram os números e seu mistério era a própria matemática. O termo "pitagórico" deriva do mestre que teria fundado o grupo, Pitágoras de Samos (570 a.C.-496 a.C.). 

   Praticamente nada se sabe sobre a vida de Pitágoras porque os pitagóricos o descreviam de forma mitológica. Alguns chegaram a duvidar que Pitágoras tenha existido. Segundo escritores antigos, foi Pitágoras que criou o termo filósofo, que em grego significa "amigo da sabedoria". 

   Apesar do segredo, muitos filosófos gregos eram pitagóricos e escreviam seus livros inspirados nas doutrinas secretas. Além disso, alguns pitagóricos traíram o voto de sigilo e revelaram alguns segredos. Assim os pitagóricos acabaram legando aos gregos um vasto conhecimento matemático relativo aos números naturais e à geometria. Os números eram mais do que meras abstrações. Números possuiam qualidades, sexo, alguns tinham amizade entre si, etc. E por trás destas qualidades estavam propriedades aritméticas dos números estudadas até hoje.  

   Os pitagóricos de maior destaque foram os filosófos gregos Empedocles de Agrigento (490 a.C- 435 a.C.), Filolau de Crotona (que viveu no séc. V a.C. mas não se sabe exatamente quando) e Arquitas de Tarento (428 a.C.-347 a.C.). Empedocles é famoso por ter criado a teoria dos quatro elementos: fogo, ar, água e terra. 

   O filosófo Platão de Atenas (427 a.C.-347 a.C.) não é contado entre os pitagóricos mas foi profundamente influenciado pelo pitagorismo.

   Apesar de geniais, os pitagóricos tinham um conceito bem restrito de número. O 1 não era número. Números eram pluralidade e o 1 era único, singular. O primeiro número era o 2, o segundo era o 3, etc. Os pitagóricos conheciam as frações mas não as classificavam como números. Frações podiam ser representadas como um par de números (por exemplo, 2/3, 3/5, etc.) ou como o 1 seguido de um número (por exemplo, 1/2, 1/3, etc.). 

   A existência de medidas que não podiam ser representadas por frações, hoje chamadas de números irracionais, provocaram um verdadeira crise na escola pitagórica. Paradoxalmente, diversas medidas não fracionárias são encontradas através do "teorema de Pitagóras''. Os pitagóricos também não conceberam o zero, nem os números negativos e nem os complexos. Mas isso é outra história... 

   Em linguagem moderna, o números concebidos pelos pitagóricos juntamente com o zero e o 1 formam o conjunto dos números naturais, representados por N. Geralmente o conjunto dos naturais é apresentado na forma: 
N={0,1,2,3,4,...}

onde as reticências significam que o conjunto continua infinitamente. 


As partes de um número, os divisores.


   Para conhecer o interior de alguma coisa é necessário dividi-la. Com os números não é diferente. Para conhecer o interior de um número é necessário dividi-lo. 

   Mas a divisão que interessa é a divisão exata. Por divisão exata os matemáticos se referem a divisão com resto zero. Por exemplo, 10 pode ser dividido em 2 grupos com 5 unidades cada. Em outras palavras, 10=5+5=2x5. Assim a divisão de 10 por 2 é exata. Da mesma forma, o número 10 pode ser dividido em 5 grupos de 2 unidades, 10=2+2+2+2+2=5x2. Então a divisão de 10 por 5 também é exata. A divisão de 10 por 1 é exata porque é possível pensar neste número como 1 grupo com 10 unidades, 10=1x10. Enfim a divisão 10 por 10 é exata porque se obtem 10 grupos com 1 unidade cada, 10=1+1+1+1+1+1+1+1+1+1=10x1. Mas 10 não pode ser dividido exatamente em 3 grupos. Dez resulta em 3 grupos de 3 unidades com resto 1, ou seja, 10=3x3+1. Assim 10 dividido por 3 não é uma divisão exata. A divisão de 10 por 4 não é exata porque 10=4x2+2. As divisões de 10 por 6, 7, 8 e 9 também não são exatas.  

   Quando um número dividido por outro resulta em divisão exata, o segundo é designado como divisor do primeiro. Por exemplo, 1, 2, 5 e 10 são divisores de 10. Já 3, 4, 6, 7, 8 e 9 não são divisores de 10. Os números 1, 2, 3, 4, 6 e 12 são divisores de 12. Já 5, 7, 8, 9, 10 e 11 não são divisores de 12.

   Um conceito que facilita o estudo dos divisores é o de ``múltiplo''. Se um número é divisor de um segundo, o segundo é múltiplo do primeiro. Por exemplo, 2 é divisor de 10, logo é 10 múltiplo de 2. Já o 3 não é divisor de 10, logo 10 não é múltiplo de 3. A idéia por trás da nomenclatura "múltiplo" é que a relação pode ser escrita como multiplicação. Por exemplo, 10 é múltiplo de 2 porque 10 pode ser escrito como 2x5. Já 15 não é múltiplo de 2 porque não há número "natural" multiplicado por 2 que resulte em 15. Mas 15 é múltiplo de 3 porque 15=3x5.

      Eis abaixo uma lista dos números de 1 até 30 com seus respectivos divisores:

1: 1
2: 1 e 2
3: 1 e 3
4: 1, 2 e 4
5: 1 e 5
6: 1, 2, 3 e 6
7: 1 e 7
8: 1, 2, 4 e 8
9: 1, 3 e 9
10: 1, 2, 5 e 10
11: 1 e 11
12: 1, 2, 3, 4, 6 e 12
13: 1 e 13
14: 1, 2, 7 e 14
15: 1, 3, 5 e 15
16: 1, 2, 4, 8 e 16
17: 1 e 17
18: 1, 2, 3, 6, 9 e 18
19: 1 e 19
20: 1, 2, 4, 5, 10 e 20
21: 1, 3, 7 e 21
22: 1, 2, 11 e 22
23: 1 e 23
24: 1, 2, 3, 4, 6, 8, 12 e 24
25: 1, 5 e 25
26: 1, 2, 13 e 26
27: 1, 3, 9 e 27
28: 1, 2, 4, 7, 14 e 28
29: 1 e 29
30: 1, 2, 3, 5, 6, 10, 15 e 30


   Alguns padrões que aparecem na lista de divisores dos números podem ser generalizados. É necessário ressalta-los.

   O número 1 é divisor de todos os números naturais. Dividir um número por 1 é formar um único grupo com todas as unidades sem nenhum resto. Assim, um número dividido por 1 é ele mesmo. Por exemplo, 10=1x10, 11=1x11, etc. Outra forma de descrever o mesmo fato é que "todo o número é múltiplo de 1". 

   Todo o número é divisor de si mesmo. Dividir um número por ele mesmo é formar um grupo para cada unidade. Cada grupo fica com uma única unidade sem nenhum resto. Assim um número dividido por ele mesmo é 1. Por exemplo, 10=10x1, 11=11x1, etc. Outra forma de descrever isso é que todo número é múltiplo de si mesmo.

   Entre os divisores de um número, o mesmo é denominado ``divisor impróprio''. Em outras palavras, todo número é um divisor impróprio de si mesmo. Assim 10 é divisor impróprio de 10, 11 é divisor impróprio de 11, etc. Os demais divisores de um número são denominados ``divisores próprios''. Por exemplo, 1, 2 e 5 são divisores próprios de 10, enquanto 10 é divisor impróprio de 10. O único divisor próprio de 11 é 1 enquanto 11 é divisor impróprio. 

   Os pitagóricos não incluíam os divisores impróprios em suas listas. Por exemplo, para os pitagóricos os únicos divisores de 10 seriam 1, 2 e 5. O único divisor de 11 seria o 1.

   O divisor impróprio de 1 é 1. O número 1 é o único que tem apenas um divisor: o próprio 1. O número 1 é o único que não tem divisor próprio. 

   O problema dos divisores de zero será discutido no próximo tópico.

   Com exceção do 0 e do 1, os demais números têm pelo menos dois divisores: o 1 e o divisor impróprio, ele mesmo. 

   O número 2 é divisor de todos os números pares mas não é divisor de nenhum ímpar. A própria definição de par é de um número que é múltiplo de 2. Na classificação moderna o número 1 é ímpar porque não é múltiplo de 2. Mas para os pitagóricos o 1 não era um número, portanto não podia ser ímpar. 

   Na classificação moderna o zero é par porque é múltiplo de 2 (0=2x0). Mas os pitagóricos desconheciam o zero de forma que para eles 0 não podia ser par.
   
   Os números que tem exatamente dois divisores recebem o adjetivo "primo". Se os números primos têm apenas dois divisores, eles devem ser o 1 e o divisor impróprio. O número 0 não é primo por razões que serão discutidas no próximo tópico. Já o número 1 não é primo porque tem apenas um único divisor. O número 2 tem dois divisores, 1 e 2, portanto é o primeiro número primo. O 3 também é primo porque tem somente dois divisores, 1 e 3. Mas o 4 não é primo porque tem 3 divisores: 1, o divisor impróprio (4) e 2.
   Há infinitos números primos. Na lista acima é possível ver que os números primos entre 1 e 30 são: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17, 19, 23 e 29.

   
   O único divisor próprio de um número primo é o 1. Como os pitagóricos não incluíam o divisor impróprio como divisor de um número, para eles o único divisor de um primo era o 1. Por esta razão, os pitagóricos usavam o adjetivo "primo" com o sentido de "primordial", "primeiro". O número primo não tinha "partes" caso ele fosse escrito como um produto. Por exemplo, o número 7, que é primo, só pode ser escrito como 1x7 ou 7x1. Fica impossível escreve-lo como produto de números diferentes de 7. Isso pode ser generalizado para todos os primos. O número primo não pode ser "decomposto", ele é primordial, indivisível.
   
   Os números diferentes de 0 que têm mais de 2 divisores são chamados de compostos. Por exemplo, o número 4 é composto porque tem mais de dois divisores. O número 11 não é composto porque tem somente dois divisores. Assim 11 é primo. Já o número 15 é composto porque tem mais de dois divisores: 1, 3, 5 e 15.
   

   Todos os pares diferentes de 0 e 2 são compostos porque tem pelo menos três divisores: 1, 2 e o divisor impróprio. Ou seja, o único número par que é primo é o 2.
   
   Os números compostos recebiam este nome porque podiam ser escritos como "compostos" por um produto de números diferentes deles mesmos. Assim o número 6, que é composto, pode ser escrito como 2x3. O número composto 9 pode ser escrito como 3x3. Enfim, todos os números compostos podem ser "decompostos". 
   
   A decomposição mais completa que um número composto pode sofrer é em fatores primos. Por exemplo, 6=2x3 e 2 e 3 são primos. O número 45 pode ser escrito como 3x15, mas apenas 3 é primo. Reescrevendo 45=3x3x5, os únicos fatores, 3 e 5, são primos.
   
   O produto dos primos gera todos os compostos.Assim os números naturais podem ser primos ou compostos, um ou outro, sendo que o 1 e o 0 ficam excluídos desta classificação.

 
Breve discussão sobre o zero


   Nos dois parágrafos seguintes será descrito o problema do zero na divisão. Caso o leitor não compreenda os dois parágrafos, não desanime e siga em frente para o próximo tópico, "perfeição de um número". Não é necessário entender o "zero" para compreender os números perfeitos. Mas já que se falou de divisão, vale a pena mencionar o papel do 0. 

   Não se pode dividir nenhum número por zero. As razões não são óbvias. Um argumento superficial é que não se pode dividir um número em zero grupos. Que sentido teria dividir 10 em zero grupos ? Quantas unidades ficam em cada grupo se não há grupos ? Nem mesmo o 0 pode ser dividido por 0. Então zero não é divisor de nenhum número. Com isso 0 não é divisor nem de si mesmo. Zero é o único número que não tem divisor impróprio.

   O número zero pode ser dividido por qualquer número diferente de 0. Zero pode ser dividido em um único grupo com zero unidades (0=1x0), em dois grupos com zero unidades cada (0=0+0=2x0), em três grupos com zero unidades cada (0=0+0+0=3x0) e assim sucessivamente. Em outras palavras, 0 dividido por qualquer número diferente de 0 é 0. Todos os números são divisores de 0 exceto o próprio 0. Assim zero tem infinitos divisores. O número 0 não é primo porque tem mais de 2 divisores. Zero também não é composto porque a própria definição já excluiu o zero. Assim como o número 1, 0 não é primo e nem composto.

   Em resumo, nenhum número pode ser dividido por zero mas 0 pode ser dividido por todos os outros números, resultando em 0. Mas caso o leitor não tenha entendido este tópico, prossiga. Quando os números perfeitos foram concebidos pelos pitagóricos, o 0 não era nem sonhado.


Perfeição nos números
   
   Para entender um número, os pitagóricos somavam seus divisores próprios. Se os divisores próprios de um número revelariam como ele pode ser decomposto, a soma deles sintetizaria as informações.
   Por exemplo, os divisores próprios de 4 são 1 e 3. A soma destes divisores é 1+2=3. Assim soma dos divisores próprios de 4 é 3. O único divisor próprio de 5 é 1. Assim a soma dos divisores próprios de 5 é 1. Isso pode ser generalizado para todos os números primos. A soma dos divisores próprios de um número primo é 1, confirmando seu caráter primordial. Os divisores próprios de 6 são 1, 2 e 3. A soma dos divisores próprios de 6 é 1+2+3=6. Esta coincidência chamou a atenção dos pitagóricos. 

   Todo número cuja a soma dos divisores próprios coincide com ele mesmo recebe o adjetivo de "perfeito". O segundo número perfeito é o 28 porque pode ser escrito como a soma de seus divisores próprios: 28=1+2+4+7+14. O terceiro número perfeito é 496. Os divisores próprios de 496 são 1, 2, 4, 8, 16, 31, 62, 124 e 248 e 1+2+4+8+16+31+62+124+248=496.

   O grande matemático grego Euclides (360 a.C.-295a.C.) conhecia apenas os quatro primeiros números perfeitos: 6, 28, 496 e 8.128. Apesar disso, ele descobriu um método para achar todos os números perfeitos

   O matemático sírio (provavelmente de origem grega) Nicomachus de Gerasa (60-120) deu importantes contribuições para a matemática e escreveu sobre os números perfeitos. Apesar de ser brilhante, este matemático cometeu alguns erros. Por exemplo, embora ele não tenha encontrado o quinto número perfeito, ele acreditava que ele teria 5 algarismos. Como será visto neste texto, o quinto número perfeito, 33550336, tem 8 algarismos. Ele também acreditava que os números perfeitos terminavam com os algarismos 6 e 8 alternadamente. Como será visto a seguir, todo número perfeito termina com 6 ou com 8, mas não alternadamente.

   Os primeiros teólogos cristãos ficaram fascinados pelos números perfeitos. Os teólogos usavam o simbolismo pitagórico para interpretar o papel dos números nas Sagradas Escrituras. Santo Agostinho (354-430), considerado por muitos como o pai da teologia cristã, acreditava que Deus criou o mundo em 6 dias porque 6 é um número perfeito. Santo Isidoro de Sevilha (560-636) também adotou esta interpretação da criação. 

   O fascínio pelos números perfeitos foi herdado pelos teólogos mulçumanos. Os povos convertidos ao islamismo, principalmente árabes e persas, puderam reunir a matemática grega com a indiana e a chinesa, desconhecidas pelo Ocidente durante séculos. Da matemática indiana os árabes adotaram o sistema de numeração conhecido hoje como indo-arábico. Com todos estes avanços, os números perfeitos puderam voltar a ser estudados além do 8.128.

   O matemático árabe Thabit Ibn Qurra (836-901) estudou algumas propriedades dos números perfeitos. Depois dele quase todos os matemáticos arábes pesquisaram os números perfeitos. Ibn Al-Haythan (965-1039) redescobriu o método de Euclides para encontrar números perfeitos. Ismail Ibn Ibrahim Ibn Fallus (1194-1239) descobriu o quinto, sexto e sétimo números perfeitos: 33.550.336, 8.589.869.056 e 137.438.691.328. O quinto e sexto números perfeitos não alternam 6 e 8, o que mostra que o genial Nicomachus estava errado. Mas Ismail Ibn Ibrahim Ibn Fallus errou o oitavo, nono e décimo números perfeitos

   A produção árabe foi interrompida pelo  incêndio da biblioteca de Bagdá pelos mongóis em 1258. Infelizmente uma parte significativa da produção cultural árabe e persa se perdeu na destruição desta imensa biblioteca, a maior da época.

   Com o Renascimento, os europeus voltaram-se para a antiga cultura grega e redespertaram seu interesse pela matemática. Mas infelizmente eles não dispunham de grande parte do conhecimento árabe. O matemático italiano Luca Pacioli (1445-1517) desenvolveu um método errôneo para chegar aos números perfeitos. Com o método dele chegava-se a uma lista que misturava números perfeitos com não perfeitos. O matemático alemão Johanes Muller von Konigsberg (1436-1476), conhecido como Regiomontanus, redescobriu os quinto, sexto e sétimo números perfeitos. Outros matemáticos europeus redescobriram os primeiros 7 números perfeitos e outros mais. Entre eles merecem destaque o italiano Pietro Cataldi (1552-1626) e os franceses Marin Mersenne (1588-1648), Rene Descartes (1596-1650) e Pierre Fermat (1601-1665). 

   Enfim o grande matemático suiço Leonard Euler (1707-1783) deu contribuições decisivas para a teoria dos números perfeitos.

   Atualmente os computadores são um aliado essencial na busca pelos números perfeitos. Sem os computadores seria impossível continuar a busca pela perfeição nos números. Uma lista dos números perfeitos obtidos até 2006 está exposta no endereço eletrônico:

   A lista acima não leva em conta que o quinto, sexto e sétimo números perfeitos foram descobertos pelos árabes. As datas e créditos das descobertas são relativas às redescobertas européias.

Defeito nos números

   Um número cuja a soma dos divisores próprios é menor do que o mesmo recebe o adjetivo "defeituoso" ou "menos que perfeito" . Isso acontece com quase todos os números. Por exemplo, os números primos são defeituosos porque a soma de seus divisores próprios é 1 e 1 é menor do que qualquer primo. O número 4 não é primo, mas é defeituoso porque a soma de seus divisores próprios é 3 e 3 é menor do que 4. E assim por diante.

   O fato dos números defeituosos serem qualificados como tais não implica que eles eram desprezados pelos pitagóricos. Por que os pitagóricos classificariam os números primos como defeituosos se eles são primordiais ? Por que os pitagóricos chamariam seu número mais sagrado, o 4, de defeituoso ? Na verdade, não existe nenhum texto ou evidência indicando que os primeiros pitagóricos empregavam o termo "defeituoso" para os números menos que perfeitos. A classificação "defeituoso" só aparece na obra de Nicomachus de Gerasa quase 600 anos depois. Neste texto será mantida a classificação defeituosa porque ela aparece na literatura. 

Números quase perfeitos e o caminho para perfeição

   Entre os números defeituosos há alguns que são classificados como quase perfeitos. Para estes números, a soma dos divisores próprios é o seu próprio antecessor, ou seja, o número que vem imediatamente antes. O número 2 é quase perfeito porque a soma dos seus divisores próprios é 1. O número 4 também é quase perfeito porque a soma de seus divisores próprios é 3. O número 8 é quase perfeito. Os divisores próprios de 8 são 1, 2 e 4 e 1+2+4=7, onde 7 é antecessor de 8. Já os divisores de 16 são 1, 2, 4 e 8 e 1+2+4+8=15 e 15 é antecessor de 16. Assim 16 é um número quase perfeito. Na verdade qualquer número que resulte do 2 multiplicado por si mesmo é quase perfeito. Em  outras palavras todo o número quase perfeito é da forma 2, 2x2=4, 2x2x2=8, 2x2x2x2=16, 2x2x2x2x2=32, 2x2x2x2x2x2=64, 2x2x2x2x2x2x2=128, etc. 

      É através dos números quase perfeitos que se chega aos números perfeitos. Mas antes de encontrar os números perfeitos é necessário definir uma classe especial, os "primos de Mersenne".  Os primos de Mersenne são números antecessores dos quase perfeitos e ao mesmo tempo primos (como o nome já indica). Por exemplo, o antecessor de 2 é 1, mas 1 não é primo, então 1 não é primo de Mersenne. Já o antecessor de 4 (número quase perfeito) é 3 e 3 é primo. Então 3 é um primo de Mersenne. O antecessor de 8 (número quase perfeito) é 7 e este último é primo. Então 7 é primo de Mersenne. Mas o antecessor de 16 é 15 e 15 não é primo porque é múltiplo de 3 e de 5. Assim 15 não é primo de Merssenne. O antecessor de 32, 31, é um primo de Mersenne. Mas 63 (antecessor de 64) não é primo, logo 63 não é primo de Mersenne. O quarto, quinto, sexto e sétimo primos de Mersenne são respectivamente: 127, 8.121, 131.071 e 524.287. Existem infinitos primos de Mersenne.

   O nome "primos de Mersenne" é uma homenagem ao matemático Marin Mersenne. Embora Euclides e Ibn Al-Haythan  já sabiam que era necessário achar os primos de Mersenne para encontrar números perfeitos, foi Marin Mersenne quem primeiro estudou sistematicamente as propriedades dos números que levam seu nome. 

   O grande matemático Leonard Euler fez grandes contribuições no estudo dos primos de Mersenne. Foi através do estudo dos primos de Mersenne que Euler contribui tanto na procura dos números perfeitos.

   Hoje em dia os computadores são os grandes aliados na busca dos primos de Mersenne. Uma tabela com os primos de Mersenne encontrados até agosto de 2008 pode ser encontrada no endereço eletrônico:

   Finalmente é possível encontrar os números perfeitos

   "Multiplique um primo de Mersenne por seu sucessor (número que vem imediatamente depois). Divida o produto por 2. O resultado final é um número perfeito".

   Por exemplo, o primeiro primo de Mersenne é 3. Multiplicando 3 por seu sucessor, 4, chega-se a 3x4=12. Dividindo 12 por 2 chega-se a 6. E 6 é o primeiro número perfeito. Já o segundo primo de Mersenne é 7. Multiplicando 7 por seu sucessor, 8, chega-se a 56. E 56 dividido por 2 resulta em 28. O segundo número perfeito é 28. O terceiro primo de Mersenne é 31, que multiplicado por seu sucessor (32) resulta em 31x32=992. E dividindo 992 por 2 chega-se a 496 (terceiro número perfeito).

   Para cada primo de Mersenne que se encontra, chega-se a um número perfeito. Mas será que este método esgota todas as possibilidades ? Até 2008, com todo o aparato computacional disponível, se sabe que todos os números perfeitos que têm até 602 algarismos é encontrado através dos primos de Mersenne. Uma das consequências disso é que todo o número perfeito termina com 6 ou 8. Assim nunca foi encontrado um número perfeito ímpar e nem um perfeito par que terminasse em 0, 2 ou 4.

   A medida que se avança no conjunto dos números naturais, os primos de Mersenne ficam mais raros. Por exemplo, os cinco primeiros primos de Mersenne são relativamente  próximos: 3,7, 31, 127 e 8.121. Mas o quinto primo de Mersenne é 131.071 e tem dois algarismos a mais do que o quarto. Esta raridade de primos de Mersenne vai aumentado após 131.071. Como consequência os números perfeitos também vão ficando cada vez mais raros. Os quatro primeiros números perfeitos são 6, 28, 496 e 8.128. Já o quinto número perfeito é bem maior do que o quarto, 33.550.336.

Números perfeitos e números triangulares

   Os pitagóricos classificavam como números triangulares a soma em sequência do 1 com os demais números. Assim 1+2=3 é triangular. O segundo número triangular é 1+2+3=6. Assim 6 é ao mesmo tempo um número perfeito e triangular. O terceiro é 1+2+3+4=10. O quarto número triangular é 15=1+2+3+4+5.

   O conjunto do 1 com 2, 3 e 4 recebia o nome de Sagrada Tetraktys. Os pitagóricos tinham uma veneração especial por este grupo da unidade com os "três primeiros números" (para eles o 1 não era número). O 10, por ser a soma do 1 até 4, também era considerado sagrado. Os pitagóricos "quase" desenvolveram o sistema decimal indo-arábico mais de mil anos antes dos indianos. Um dos obstáculos para isso era a falta do algarismo 0. Mas isso é outra história...

   Por que falar de números triangulares em um artigo sobre números perfeitos ? Porque como o leitor já deve ter desconfiado, todo o número perfeito é triangular. Mas nem todo o número triangular é perfeito. Assim 3, 10, 15 e 21 são triangulares mas não são perfeitos. Já 28, que é perfeito, é necessariamente triangular. De fato, 28=1+2+3+4+5+6+7.

   Os números triangulares fornecem outro método de achar números perfeitos. Somando a sequência do 1 até um primo de Mersenne chega-se a um número perfeito. Assim a soma de 1 até 3 (primo de Mersenne) resulta em 6. Já a soma de 1 até o primo de Mersenne 7 resulta em 28. A soma de 1 até 31 resulta em 496. E assim por diante.

Abundância nos números

   Há números cuja soma dos divisores próprios é maior do que o mesmo. Eles são chamados de números abundantes ou  "mais que perfeitos". Os números "abundantes" são mais raros do que os imperfeitos mas mais frequentes do que os perfeitos. O número 12 é o menor número abundante. Os divisores próprios de 12 são: 1, 2, 3, 4 e 6 e a soma deles é 1+2+3+4+6=16 e 16 é maior do que 12. Depois do 12 o próximo número abundante é o 18. Os divisores próprios de 18 são 1, 2, 3, 6 e 9. A soma 1+2+3+6 +9=21. 

   Os múltiplos de um número perfeito diferentes dele mesmo são abundantes. Assim todos os múltiplos de 6 (exceto o próprio 6) são abundantes: 12, 18, 24, 30, etc. Os múltiplos de 28 (que não sejam o próprio 28) também são abundantes: 56, 84, 112, etc. 

   Mas nem todo o número abundante é múltiplo de um número perfeito. Por exemplo, o número 20 tem como divisores próprios 1, 2, 4, 5 e 10 e nenhum destes números é perfeito. No entanto a soma dos divisores próprios de 20 mostra que ele é um número abundante. Calculando 1+ 2+4+5+10=22 e 22 é maior do que 20.

   Todo múltiplo de um número abundante é abundante. Assim os múltipos de 20 são todos abundantes: 20, 40, 60, 80, 100, etc. Os múltiplos de 56 são todos abundantes: 56, 112, 168, etc. O menor número abundante ímpar é 945. Todos os múltiplos de 945 são abundantes: 945, 1.890, 2.835, etc.
  
    A nomenclatura abundante para designar os números "mais que perfeitos" só aparece na obra de Nicomachus de Gerasa. Mas os pitagóricos não atribuíam nenhuma superioridade ao números abundantes em relação aos perfeitos

   O número 1 não tem divisores próprios, portanto não se pode soma-los. Mesmo considerando o 1 como número, não faz sentido classificar o 1 como defeituoso, nem como abundante e nem como perfeito. O número zero, com seus infinitos divisores, também não se enquadra nesta classificação.
   Abaixo há uma lista com os números de 2 até 30, com a soma dos divisores próprios de cada número exibida ao lado. Fica fácil ver quais os números defeituosos, perfeitos e abundantes.

2: 1. Defeituoso
3: 1. Defeituoso
4: 1+ 2=3. Quase perfeito, portanto defeituoso.
5: 1. Primo, portanto defeituoso.
6: 1+2+3=6. Perfeito
7: 1. Primo, portanto defeituoso.
8: 1+2+4=7. Quase perfeito, portanto defeituoso.
9: 1+3=4. Defeituoso.
10: 1+2+5=8. Defeituoso.
11: 1. Primo, portanto defeituoso.
12: 1+2+3+4+6=16. Abundante.
13: 1. Primo, portanto defeituoso.
14: 1+2+7=10. Defeituoso.
15: 1+3+5=9. Defeituoso.
16: 1+2+4+8=15. Quase perfeito, portanto defeituoso.
17: 1. Primo, portanto defeituoso.
18: 1+2+3+6+9=21. Abundante.
19: 1. Primo, portanto defeituoso.
20: 1+2+4+5+10=22. Mais que perfeito
21: 1+3+7=11. Defeituoso
22: 1+2+11=14. Defeituoso
23: 1. Primo, portanto defeituoso.
24: 1+2+3+4+6+8+12=36.  Abundante.
25: 1+5=6. Defeituoso
26: 1+2+13=16. Defeituoso
27: 1+3+9=13. Defeituoso
28: 1+2+4+7+14=28. Perfeito
29: 1. Primo, portanto defeituoso.
30: 1+2+3+5+6+10+15=42. Abundante.
Reflexões sobre a perfeição dos números


   Duas reflexões podem ser extraídas sobre os números perfeitos. Uma reflexão sobre o conceito de um número e outra sobre perfeição.

   Em primeiro lugar, os números, que são quantidades, também podem ser compreendidos como qualidades. Mesmo sem adotar a mística pitagórica, os números podem ser primos ou compostos, perfeitos ou não, etc. As qualidades numéricas emergem das próprias propriedades quantitativas dos números. Por exemplo, a perfeição de um número, uma qualidade, está associada a uma propriedade quantitativa, a igualdade entre um número e a soma de seus divisores próprios. 


    Talvez falar de números de um ponto de vista qualitativo ajude a sociedade a superar seu preconceito com relação a matemática. Este preconceito exclui as pessoas de todos os benefícios da modernidade. O dinheiro deixou de ser papel e moeda para se tornar um número que aparece nas telas dos caixas eletrônicos. Os alimentos são avaliados pelas quantidades de nutrientes e calorias presentes nas embalagens. Os serviços e a administração das empresas exigem cada vez mais raciocínio lógico. Os números são a nova esfinge que se não compreendidos estrangulam o homem.


   A segunda reflexão é sobre o conceito de perfeição. A noção pitagórica de perfeição era diferente da atual. Na atualidade, perfeição é um estado onde não há defeitos. Já para os pitagóricos, perfeição era uma correspondência entre as partes e o todo.


   Se o conceito de perfeição pitagórico fosse igual ao atual, um número defeituoso não poderia ser o mais sagrado, o 4. Além disso, nenhum número poderia exceder a perfeição, como os abundantes fazem.


   Atualmente as pessoas acabam desistindo de serem perfeitas e de aperfeiçoar o mundo que as rodeia. Perdem-se os ideais. Para que melhorar se a perfeição é um estado impossível ? Talvez o conceito pitagórico de perfeição anime o homem a aperfeiçoar-se.


   Como aplicar o conceito de perfeição pitagórica ao ser humano ? Perfeição é o que está fora concordar com o que está dentro. Um ser humano perfeito é aquele que cabe em si mesmo. Quem é perfeito é sincero porque mostra o que está dentro de si mesmo.  A pessoa perfeita não tentaria fingir ou ser algo que ela não é. Ao contrário, o ser humano perfeito é exatamente ele mesmo, nem mais e nem menos. 


   O caminho da perfeição começa com uma pergunta. Quem sou eu ? No momento que o homem encontra a resposta, ele é exatamente ele mesmo. 


   Mas o que fazer enquanto não se encontra o si mesmo ? Só resta continuar buscando o autoconhecimento. Quem chegar a ser quase perfeito já pode ficar feliz porque a quase perfeição é o caminho para a perfeição.


6 comentários:

  1. Olá Sr. Professor Leonoardo!
    Sou mãe de um(a) de teus alunos(as)que assiste tua aula da materia "fisica-matemática".
    Agora entendo porque tua aula é tão apreciada! Até eu que nem cheguei ao curso superior, apreciei.O Sr. tem, para a licenciatura, as qualidades fundamentais: O saber,a vontade de transmitir o que sabe e o "dom" de transmitir o que sabe.Desde o início da escola eu pouco conseguia aprender matemática, e entender,...praticamente nunca.
    Por estes textos tão esclarecedores e n'uma linguagem simples, acho que pude compreender um pouquinho.Escolhi um nº(não peguei na net, nem consultei algém) e descrevo-o abaixo apenas o que penso ter compreendido:
    36:1,2,3,4,6,9,12,18 (multiplicadores e divisores),36 então, nº perfeito.
    36: 1+2+3+4+6+9+12+18= 55, então abundante (55> que 36).
    Os demais textos(aulas) sobre Nºs triangulares e nº 0 deixo para outra ocasião.
    Para aplicação na execução do meu trabalho artesanal prefiro os nºs perfeitos, mas me arranjo com os imperfeitos também.
    Para a aplicação em termos de humanidade "metaforicamente",descrevo:
    -Concordo com Pitágoras em não incluir os divisores impróprios em suas listas,porque que graça teria dividir algo comigo mesmo? rsrs
    -Na divisão tanto faz os nºs perfeitos ou imperfeitos, poder dividir já está de bom tamanho e o que restar fica para a próxima!
    - na multiplicação, é claro, qualquer n° acima do nº 1 já favoreceria ainda mais na hora de dividir.
    Estou ainda em busca da perfeição,seja em mim mesma ou no que trabalho e não pretendo desistir!
    Desculpe o extenso comentário e se pareceu ousado.
    Abraço e Prosperidade!!!

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    1. Muitíssimo obrigado Márcia!

      Você tem mais algum tema que te interessa?

      Abração!

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  2. PARABÉNS lEONARDO!!! ESTE ARTIGO NOS DÁ UMA BAITA INSPIRAÇÃO!! BELEZA PURA!!

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    1. Muitíssimo obrigado Unknown! Espero que este texto tenha tornado este tema knowed para você!

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  3. Parabéns por seu trabalho... Digno de respeito... Lí uma vez e vou estudar mais. Obrigado.

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