sábado, 26 de novembro de 2011

Amizade entre os números

Autor: Leonardo Sioufi Fagundes dos Santos


Texto publicado originalmente na revista Vox Scientiae na edição de agosto/setembro de 2008
( www.abradic.voxscientiae/anteriores )


   O que é amizade ? Uma definição exata e ao mesmo tempo enigmática sobre a amizade é atribuída ao filósofo grego Pitágoras (séc. V a.C.): “amigo é aquele que é o outro eu, como acontece com 220 e 284”. Na escola filosófica fundada por Pitágoras na cidade de Crotona, os discípulos do mestre cultivavam a amizade mútua. Pitágoras não ensinava apenas a amizade entre os homens. Ele foi o primeiro a empregar a si mesmo o termo filósofo, que em grego significa “amigo da sabedoria”. Pitágoras estendeu seu conceito de amizade aos números. 


   Na visão de Pitágoras e seus discípulos, os números eram vistos como a essência de todas as coisas. Números não eram meras abstrações. Eles tinham existência própria, possuindo até mesmo atributos como sexualidade, afetividade, graus de perfeição, etc. Conhecer os números revelava a harmonia do mundo e a contemplação matemática purificava a própria alma. Além disso, aplicando o conhecimento dos números, os pitagóricos podiam compor músicas, projetar complexos arquitetônicos e até mesmo selecionar seus alimentos e exercícios físicos.


   Os pitagóricos classificavam como números apenas aqueles que representavam quantidades. O 1 não era considerado número porque representava a unidade enquanto os números eram associados à multiplicidade. Portanto o primeiro número era o 2, o segundo era o 3 e assim por diante. 


   Medidas não inteiras não eram consideradas números, embora os pitagóricos conheciam e manipulavam frações, atribuindo grande importância a elas. Mas os pitagóricos não aceitaram a existência de medidas que não podiam ser representadas como frações de dois números inteiros. Os números associados a estas medidas são chamados hoje em dia de “irracionais”. Isso provocou uma crise na escola pitagórica pois os números irracionais apareciam como proporções de figuras geométricas conhecidas pelo próprio pitagorismo. Por exemplo as proporções "raíz quadrada de dois", a “proporção áurea (metade da soma de raíz quadrada de 5 mais 1)” e pi (=3,1415...), todos números irracionais, aparecem respectivamente no triângulo retângulo isósceles, no pentagrama e na circunferência. O número zero, números negativos e números complexos só foram concebidos muitos séculos mais tarde. Na matemática moderna todos os tipos de números citados são amplamente estudados e o conceito de número é muito mais abrangente e abstrato do que o pitagórico.


   Limitando-se ao conceito pitagórico de número, por que 220 e 284 são amigos ? Para entender o número, era necessário entender como ele podia ser dividido. Em linguagem moderna, o número seria entendido através de seus divisores. É o que será visto a seguir.


Divisores de um número


  Os divisores de um número são aqueles que deixam resto zero na divisão. Por exemplo, o número 2 é divisor de 10 porque ao se dividir 10 por 2 se obtem 5 com resto 0. Já o número 3 não é divisor de 10 porque 10 dividido por 3 resulta em 3 com resto 1. A lista completa de divisores de 10 fica: 1,2,5 e 10. 


   Um fato interessante é que o número 1 é divisor de todos os números. Todo número dividido por 1 resulta nele mesmo com resto zero. Por exemplo, dividir 10 por 1 resulta em 10 com resto 0. 


   Outro fato importante é que todo o número é divisor dele mesmo. Todo número dividido por ele mesmo resulta em 1 com resto zero. Por exemplo, dividir 10 por 10 resulta em 1 com resto 0. Os divisores de um número diferentes dele mesmo são denominados “divisores próprios”. Assim os divisores próprios de 10 são 1, 2 e 5. Já o 10 não é divisor próprio de 10.


   Então todo número tem pelo menos dois divisores: o 1 e ele mesmo. A única exceção é o próprio número 1 porque tem apenas um divisor: 1, que é ele mesmo. 


   Abaixo estão os números de 1 até 20 com seus respectivos divisores.


• 1 -> 1


• 2 -> 1 e 2 


• 3 -> 1 e 3


• 4 -> 1, 2 e 4


• 5 -> 1 e 5


• 6 -> 1, 2, 3 e 6


• 7 -> 1 e 7


• 8 -> 1, 2, 4 e 8


• 9 -> 1, 3 e 9


• 10 -> 1, 2, 5 e 10


• 11-> 1 e 11


• 12 -> 1, 2, 3, 4, 6 e 12


• 13 -> 1 e 13


• 14 -> 1, 2, 7 e 14


• 15 -> 1, 3, 5 e 15


• 16 -> 1, 2, 4, 8 e 16


• 17 -> 1 e 17


• 18 -> 1, 2, 3, 6, 9 e 18


• 19 -> 1 e 19


• 20 -> 1, 2, 4, 5, 10 e 20


   Os pitagóricos só levavam em conta os divisores próprios. Ou seja, excluíam o próprio número da lista de divisores. Se um pitagórico listasse os divisores de 10 ele escreveria apenas 1, 2 e 5. O próprio 10 seria excluído da lista. 


   Os pitagóricos dividiam os números em primos e compostos. Os "números primos" eram aqueles cujo único divisor próprio era 1 . Em outras palavras, um número primo tem apenas dois divisores: 1 (divisor próprio) e ele mesmo. Eles recebiam esta denominação por serem "primordiais", indivisíveis, sem composição. Na lista acima os números primos são: 2, 3, 5, 7, 11, 13, 17 e 19. Os números não primos eram denominados “compostos” porque podem ser escritos como “compostos" por números que se multiplicam. Por exemplo, 4=2x2, 6=2x3, 8=2x2x2, 9=3x3, 10=2x5, etc. Eles tinham mais de um divisor próprio, ou seja, mais de dois divisores. Na lista acima os números compostos são: 4, 6, 8, 9, 10, 12, 14, 15, 16, 18 e 20. Mas existem infinitos números primos e compostos. 


   Embora na linguagem matemática moderna o 1 é considerado número, ele não é classificado como primo e nem como composto. O 1 é o único número que não tem divisores próprios. Seu único divisor, 1, é ele mesmo.


   É curioso notar que o 2 é o único número par e primo ao mesmo tempo. Todo par diferente de 2 tem 2 como divisor próprio. 


   Uma vez que os pitagóricos personalizavam os números, eles procuravam saber a “composição” deles. Em outras palavras, os divisores próprios do número revelariam muito dele. Uma operação que sintetizava a composição do número era a soma dos divisores próprios. A soma dos divisores próprios de um primo era 1, revelando o caráter indivisível deles. Mas os números compostos tinham mais de um divisor próprio e a soma era diferente de 1. Para ilustrar o que foi dito, uma lista dos dezenove primeiros números (o 1 não era número) será exibida abaixo com suas respectivas somas de divisores próprios.


• 2 -> 1 =1


• 3 -> 1 =1


• 4 -> 1+2 =3


• 5 -> 1 =1


• 6 -> 1+2+3=6


• 7 -> 1=1 


• 8 -> 1+2 + 4=7


• 9 -> 1+3=4 


• 10 -> 1+2+5=8


• 11 -> 1=1 


• 12 -> 1+2+3+4+6=16 


• 13 -> 1=1 


• 14 -> 1+2+7=10 


• 15 -> 1+3+5=9 


• 16 -> 1+2+4+8=15 


• 17 -> 1=1 


• 18 -> 1+2+3+6+9=21 


• 19 -> 1=1 


• 20 -> 1+2+4+5+10=22 


   Antes de prosseguir preste atenção ao número 6 na lista acima.


Amizade entre os números


   Os pitagóricos classificavam como “números amigos” aqueles cuja a soma dos divisores próprios resultassem um no outro. Por exemplo, os divisores próprios de 220 são: 1, 2, 4, 5, 10, 11, 20, 22, 44, 55 e 110. A soma deles é 1 + 2 + 4 + 5 + 10 + 11 + 20 + 22 + 44 + 55 + 110 = 284. Os divisores próprios de 284 são: 1, 2, 4, 71 e 142. Somando estes números 1 + 2 + 4 + 71 + 142 = 220. Assim 220 e 284 são números amigos. 


   Enquanto os pitagóricos estudavam os números para obter e aplicar conhecimento, a posteridade acreditou no poder do número escrito por si só. A mística matemática pitagórica virou superstição. Durante séculos, pares de amuletos com os números 220 e 284 eram guardados por amigos afim de atrair concórdia entre eles.


   Infelizmente os pitagóricos só legaram à posteridade o par de números amigos 220 e 284. Os primeiros matemáticos a procurarem outros pares de números amigos eram árabes ou persas. O árabe Thabit Ibn Qurra (836 - 901) descobriu uma fórmula para encontrar números amigos. Esta fórmula o levou a redescoberta do par 220 e 284 e há indícios de que ele tenha encontrado os amigos 17.296 e 18.416. Enquanto não se confirma a historicidade desta descoberta, o árabe Ibn Al-Banna (1256 - 1321) pode ser considerado o primeiro a descobrir o par 17.296 e 18.416 usando a fórmula de Thabit. Provavelmente de forma independente, o persa Kamal Al-Din Farisi (1267 - 1319) também calculou o par 17.296 e 18.416 pela fórmula de Thabit. Outro persa, Muhammad Baqir Yazdi (séc. XVI), usou a fórmula de Thabit e encontrou um outro par de amigos: 9.363.584 e 9.437.056.


   Os franceses Pierre Fermat (1601 - 1665) e Rene Descartes (1596 - 1650) redescobriram pela fórmula de Thabit respectivamente os pares de números amigos 17.296 e 18.416 e também 9.363.584 e 9.437.056. 


   Um fato bastante bizarro é que o par de números amigos 1.184 e 1.210 não é encontrado pela fórmula de Thabit. Foi um italiano de apenas 16 anos, Nicolo Paganini (que não era o violonista de mesmo nome), que descobriu o par 1.184 e 1.210 no ano de 1866. 


   O suiço Leonhard Euler (1707-1783) descobriu uma fórmula para encontrar pares de números amigos que generalizava a de Thabit. Euler descobriu outros 59 pares de números amigos. 


   Com os computadores modernos, os matemáticos chegaram a listar todos os pares de números amigos menores do que 100.000.000.000.000. A lista obtida até 2007 de números amigos pode ser encontrada no endereço eletrônico


http://amicable.homepage.dk/knwnc2.htm


   Os computadores também possibilitaram algo além dos pares de amigos, estendendo o conceito de amizade para listas de números. Estas listas de números são denominadas “círculo de amigos” ou “números sociáveis”. Por exemplo, a soma dos divisores próprios de 12.496 é 14.288. Já a soma dos divisores próprios de 14.288 é 15.472. Repetindo o processo com 15.472 chega-se a 14.536 e deste a 14.264. Enfim, a soma dos divisores próprios de 14.264 é 12.496, o primeiro número citado. Assim os números 12.496, 14.288, 15.472, 14.536 e 14.264 formam um círculo de amigos.


Da amizade à perfeição


O conceito de amizade entre números levou os pitagóricos a conceberem o conceito de “número perfeito”. Número perfeito era aquele que é amigo de si mesmo. Em outras palavras, a soma dos divisores próprios de um número perfeito é ele mesmo. 


   Por exemplo, os divisores próprios de 6 são 1, 2 e 3, cuja a soma é 1+2+3=6. Assim 6 é um número perfeito. O 6 já havia exibido sua perfeição na lista dos números acima.


   O segundo número perfeito é o 28. Os divisores de 28 são 1, 2, 4, 7 e 14 e 1+2+4+7+14=28. O terceiro e quarto números perfeitos são respectivamente 496 e 8.128. O matemático grego Euclides (360 a.C. - 295 a.C.) só conhecia estes quatro números mas descobriu uma fórmula que gerava todos os números perfeitos pares. Esta mesma fórmula foi redescoberta pelo matemático árabe Ibn al-Haytham (965 - 1039). Com o avanço da computação, a lista de números perfeitos cresce todos os dias. Há uma lista com os números perfeitos descobertos até 2006 no endereço


http://amicable.homepage.dk/perfect.htm


   Ainda não se conhecem números perfeitos ímpares mas não há provas de que eles não existam.


Conclusão


   Infelizmente muitas pessoas sentem uma verdadeira aversão por matemática. Geralmente elas associam a matemática a fórmulas que elas nunca entenderam mas precisaram decorar para provas ou concursos. 


   É necessário resgatar o aspecto estético e poético no que é matemático. E talvez a divulgação das propriedades algébricas dos números seja uma das formas de fazer este resgate. A amizade está entre as propriedades mais fascinantes entre os números. E a amizade numérica acabou introduzindo para o leitor outros conceitos matemáticos: divisores, números primos, compostos e perfeitos. 


   Será que a raridade da amizade entre números se reflete entre os seres humanos ? Talvez sim ! Mas o mesmo pitagorismo que indica a dificuldade de encontrar amigos oferece a chave para superar a solidão. Um número pode ser amigo de si mesmo. O ser humano também pode ser seu próprio amigo. E assim como os números, talvez o homem encontre a perfeição no momento que vence seu lado autodestrutivo e torna-se amigo de si mesmo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário